Batman vive!
Aquele rapaz de 24 anos, aluno de doutorado em neurociências numa
universidade dos Estados Unidos, que se mascarou de Batman e, num
cinema, disparou a esmo com um fuzil automático, o que é, afinal? Um
demente que matou 12 pessoas (entre elas uma criança de seis anos e a
mãe grávida) e feriu 58? Ou mais um demoníaco personagem na extravagante
história de crimes naquele país? Prevê a imprensa norte-americana que
ele será sentenciado à morte, até mesmo para intimidar eventuais
imitadores, mas de onde ele absorveu tanta maldade? De onde surgiu o
horror?
Seu mestre não pode ter sido Batman. O Homem Morcego
(como diziam os quadrinhos dos anos 1940) é um herói, um justiceiro
humanista em luta contra o mal, nunca um vingador do absurdo ou um
assassino voraz. Mas Batman é uma das fantasias do bem que povoam um
mundo real de dura competição num país fundado na violência, que
exterminou quase toda a população nativa, que se armou e guerreou
sempre, que invadiu o vizinho México e anexou as partes mais ricas do
território só porque lá abundava o petróleo. Aurora, no Estado do
Colorado, é uma dessas antigas vilas mexicanas, agora tristemente
universalizada pela tragédia.
Esses crimes em que o assassino
nem conhece as vítimas e mata por matar têm sido comuns nos EUA. Até o
assassinato coletivo de um ano atrás, na Suécia, foi diferente: o
criminoso era um direitista que matou para protestar contra o governo
socialista por aceitar imigrantes negros.
Qualquer dia, nos
EUA, até o ratinho Mickey sai a caçar humanos ao acaso! Lá, vendem-se
armas em qualquer lugar, como aqui se vende refrigerante. Por trás do
moço de Aurora há mais de dois séculos de violência habitando o
inconsciente coletivo. As centenas de milhares de civis mortos em
Hiroxima e Nagasaki pelas bombas atômicas dos EUA compõem o quadro
moderno da violência em que matar não é crime, mas “defesa”. Na África e
no Oriente, diferentes governos e empresas dos EUA alimentam a morte
vendendo armas e fomentando a rivalidade entre grupos étnicos.
Os EUA tornaram-se superpotência especializando-se na arte de matar e
destruir. A bomba de nêutrons foi a simbiose do militarismo e do
capitalismo: mata as pessoas, preservando os bens, como se isso servisse
aos mortos... Toda a grande pesquisa tecnológica está centrada nas
armas e destinada a destruir. Só depois de provada na morte, começa a
ser aplicada à vida. Até a internet (a maravilha que aproximou o mundo)
nasceu da necessidade de controlar o cosmos na Guerra Fria. A precisão
da eletrônica, dos foguetes teleguiados que percorrem de um a um os
cômodos de uma casa, desenvolveu-se para destruir. Foi provada,
primeiro, na Guerra do Golfo e, anos depois, ampliada no Afeganistão e
no Iraque.
Nem essa sofisticação, porém, evita que centenas de
milhares de civis, crianças inclusive, sejam mortos pelas tropas dos
EUA nesses dois países, por “erro técnico” ou simples “vingança”.
Ninguém é responsabilizado por isto.
Na era moderna, a
tecnologia é que mata. O combate corpo a corpo, à baioneta ou fuzil, é
velharia da Segunda Guerra ou, hoje, coisa de africanos e asiáticos.
Agora, aperta-se um botão e se cumpre o que o computador ordena
diretamente da White House ou do Pentágono. Matam-se civis “em defesa”
dos que guerreiam.
Tudo parece magia, como nas andanças de
Batman. O selo do poder faz de quem mata um herói. Por que pensar,
então, que o mocinho de Aurora é só um demente? Por que não pensar,
também, que a História do seu país lhe serviu de guia e que, na loucura,
nem veja que escureceu a luminosidade da aurora?
Flávio Tavares - Jornalista e escritor
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